Do
Outro Lado da Ponte
*Carlos
Alberto Barreto
Introdução
É ideológico e não critério psicanalítico a imposição
de um caráter ao brasileiro e o fechamento de determinados grupos se autorizam,
como apóstolos de uma missão messiânica, a tradutores de teoria e,
evidentemente, proprietários de uma verdade absoluta e inquestionável. Os
‘pensadores’ nada mais são do que repetidores de textos alienígenas porque não
se preocupam em analisar a cultura nacional que é resultado da variedade
étnica, dando a possibilidade de imaginar a originalidade de um País com
característica continental e singular. Entretanto, preocupados em eternizar uma
intelectualidade autônoma, acabam fazendo a política do poder. No afã de
distinguir política e ciência, teoria e prática, distanciam-se da PRÁXIS que é
um critério a ser discutido em outro artigo.
Dispondo-me à observação clínica de uma parcela da
população a que denomino C, faço os primeiros traços de uma longa história.
É tarefa difícil explicar de um só fôlego esse
exercício clínico que, durante nove anos, só tive a oportunidade de discutir
num círculo bastante restrito, embora amistoso ao ponto de permitir ânimo para
não esmorecer.
Dizia-me Inês Besouchet (psicanalista) num dos últimos
encontros que tivemos, que eu deveria persistir na minha tarefa porque o mais
importante era a presença do psicanalista, ao que acrescentei, também, a
coerência pessoal e teórica. Coerência pessoal pela certeza de que é sumamente
impossível o trajeto na cultura sem o confronto com o tempo e a história.
Coerência teórica porque nada mais esdrúxulo do que um psicanalista que não se
permita seguir o caminho poético e profundamente criativo que a teoria e a
clínica instrumentam.
“Nada é fácil nesta época de pós-modernidade,
glorificação do presente como instante fugidio e único no tempo real e a
ausência de futuro – previsão de extinção que se prolonga desde o
descobrimento”.
Hoje em fins de século, os clarins salvacionistas
anunciam o fim da história, as promessas e previsões que retiram dos homens seu
poder de decisão, transformando-os em meros expectadores do processo natural
das coisas, subordinando-os às grades da perpetuação da espécie, afastando-os
do ato germinativo e criador. Supervalorizando o presente, desmemoriados da
história e esquecidos das questões do nosso tempo eliminam-se os sonhos, as
utopias e a arte.
A carta
Este é um trecho da carta que Freud enviou a sua noiva
Marta Bernays, em 29.08.1883, numa quarta-feira a noite:
“...toda conduta de nossa vida pressupõe que sejamos
protegidos da pobreza mais terrível e que exista a possibilidade de podermos
livrar-mos, cada vez mais, dos males sociais. Os pobres, as massas, não
poderiam sobreviver sem suas ‘peles duras’ e suas maneiras despreocupadas. Por
que haveriam de levar a sério suas relações quando toda a desgraça que a
natureza e a sociedade lhes reservam, ameaça aqueles a quem amam? Por que
haverão de desprezar o prazer do momento quando nenhum outro os aguarda? Os
pobres são inermes demais, para procederem como nós. Quando vejo as pessoas se
entregarem, desrespeitando qualquer senso de moderação, invariavelmente, penso
que esta é a compreensão por serem um alvo indefeso de todos os impostos,
epidemias, doenças e males das instituições sociais.
Não vou continuar esse raciocínio, mas será fácil
demonstrar como ‘as pessoas’ julgam, pensam, esperam e trabalham de maneira
inteiramente diferente de nós. Há uma psicologia do homem comum que difere
consideravelmente da nossa. Eles têm, também, mais espírito comunitário do que
nós, apenas para eles é natural que o homem continue a vida do outro, ao passo
que para eles é natural que o homem continue a vida do outro, ao passo que para
cada um de nós o mundo termina com a nossa morte...”
O Caráter do Brasileiro
O desconhecimento dos laços históricos de uma época ou
de um fato, permite a reprodução do modelo eurocêntrico, legado pelos
colonizadores que, em confronto com outras culturas, se deixaram levar pela
ambição, a perpetuar uma história imposta oriunda de critérios e pensamentos
estranhos e ungidos pela moralidade religiosa.
Ainda hoje tentam criar o modelo do caráter nacional
sem perspassar a trajetória construída pela história, o que invalida toda a
estruturação psicológica que pretenda lhe dar validade.
Renato Mezan nos apresenta a invenção da Psicanálise
sendo produzida dentro de um tempo, de uma história e de uma política,
afastando as tentativas de explicá-la como uma criação estéril, fruto de um
trabalho autônomo de Freud.
A voz dos despossuídos, dos marginalizados, das
prostitutas, não se apresenta porque jamais é considerada e escutada. O perigo
para um psicanalista é pensar que pensa a totalidade quando sequer se dá p
trabalho de conhecer o subúrbio da cidade onde vive, quanto mais atender a
chamada população menos favorecida. Essa história de que a porta do consultório
está aberta para qualquer um, é no mínimo piada de péssimo gosto. De um modo
geral a intelectualidade transita com a mesma desenvoltura por este caminho – como
já foi feito o diagnóstico o caso está definido, portanto não há mais nada a
discutir. É absurdo pensar um perfil brasileiro criado no interior dos
gabinetes a partir da apreensão de conceitos sem que o pesquisador tenha
efetuado um trabalho sério e preciso da história cultural do País. Por outro
lado, o texto psicanalítico é utilizado como base respeitável a esses estudos,
necessitando dos psicanalistas uma reaproximação com os conceitos fundamentais
da teoria psicanalítica, antes que a transforme em elixir paregórico das
cólicas da burguesia.
Antes - da - Lei
Uma Instituição quando se propõe ao estudo do texto
psicanalítico e a produção de conhecimento a partir de uma formação permanente,
tem que dar relevância, como porta-voz da teoria e do desenvolvimento clínico,
a uma questão básica, qual seja a questão da Lei. A Lei, mediadora do desejo,
tem no seu equilíbrio a tomada de força que evidencia a clareza nas relações
entre seus pares, numa demonstração inequívoca que só existe uma perda
fundamental que é a perda da onipotência. Lei e onipotência não se coadunam.
Lei e a prática da verdade formam a dupla de regência na orquestração do pleno
direito à vida e no merecimento à morte.
Nossa história apresenta um distúrbio com a existência
permanente de alguém que serve a Deus e ao Diabo, rasga o tecido social em duas
bandas desiguais sendo a menor, detentora do mando e da moralidade e, a outra
maior, marcada pelo desmando e a imoralidade. Entretanto um traço, quem sabe
por desígnios divinos as une – a permanência de ambas Antes-da-Lei. Esta Lei
(Ética) a que me refiro não é a incluída na máxima Kantiana que pressupõe uma
só cultura, uma só religião e um conformismo mundial.
O acesso à Lei é fundamentado nas questões da
responsabilidade e da autoridade, possibilidades estas irrealizáveis a partir
do instante em que os códigos são ideológicamente criados para defender uns e
agredir outros.
Pensar uma Instituição que se situa Antes-da-Lei é
imaginar um conjunto de indivíduos que vivem da deformação da autoridade gerando
um simulacro, portanto falsificado, que se reveste do autoritarismo e da
violência. O discurso olímpico dos mandantes setoriza a violência e cria um
estatuto emergencial onde normas definidoras estão ausentes. Discutem Ética com
lentes de Moralidade.
A necessidade da criação de um espaço de discussão
traz no miolo como cerne da questão, a instauração da Lei, onde modelando a
crítica sistemática como busca do renascimento, nos critérios democráticos das
decisões e sobretudo no sentido da existência no continente da Lei (Ética).
Com a mediação alterada, criam-se versões oriundas da
sede da Lei – fora de nós
– usadas e afirmadas sempre no
sentido dogmático, para serem aceitos sem contestações.
As tentativas para que, através a palavra no debate,
nos conduzam à acatação e assunção da Lei, merecem outro reparo no ponto em que
tratamos da questão da substituição da Lei pelo autoritarismo. É do domínio
clínico que uma pessoa seja considerada em tratamento psicanalítico, sómente se
estiver sob transferência, atitude que vai indicar o desejo de deitar a
onipotência no divã.
No desenrolar terapêutico não existem verdades
absolutas, moralismo, culpados ou inocentes. A escuta e a narrativa das
diferenças no encontro da pertinência da Lei (Lei da cultura) são condições
básicas irrefutáveis.
Nas Instituições onde a clínica é realizável com a
responsabilidade de todos nós, é fundamental a compreensão das diferenças,
busca incessante da linha de demarcação do Antes à admissão da Lei.
O Antes-da-Lei não significa ser necessariamente,
contra ela. A denegação da sua existência conduz os homens e as Instituições à
mediocridade e ao descrédito.
Estar
Antes-da-Lei é acobertar-se com o manto do
autoritarismo e do arbítrio. A assunção da Lei,
pela castração simbólica, é a
prática
da verdade que liberta. No congresso de Budapeste, ao final da primeira
Grande
Guerra, Freud fez uma analogia entre Psicanálise e a
química que, a partir de
uma substância complexa, esmiúça seus elementos
até a intimidade, transformando
o composto inicial num movimento de desdobramento infindável.
Assim ocorre
também no psiquismo e sua interminável análise.
Aquela época pretendiam alguns que, periodicamente, se
fizesse uma unificação dos dados elaborados, dando a esta tarefa todo o vigor e
valor terapêutico. Freud referiu-se a esta possibilidade denominando-a com o
discurso (ou frase) vazio e lamentando ter de ignorá-la como incapaz de
responder as questões formuladas pela química analítica.
Na microscopia das Instituições esta Psicossíntese
revela a necessidade de prevalecer a unidade como valor maior, evitando a
polêmica, construindo uma administração do Antes-da-Lei, na medida em que, não
existindo o fator da autoridade como “pivot” delimitador, as discussões
permanecem num campo narcísico, não se desdobrando, superficial, determinando
ao indivíduo, como interlocutor, um detalhe anatômico do seu próprio corpo – o
umbigo –
vestígio da primeira união com sua origem. A química elaborativa
possibilita a inauguração de outro território, o da cultura, permanentemente se
desdobrando e sempre indicando o caminho de entrada no Campo da Lei.
Existe um lugar que precisamos conhecer com certa
urgência. Um lugar onde se produz uma narrativa, em princípio estranha aos
nossos ouvidos semi-obstruídos pelo discurso da suposta competência.
A sabedoria está no ritmo dos ventos e no ruído das
pedras, na infinitude das coisas, no sorriso das crianças e no ‘pé-atrás’
daquele que sequer foi consultado ao ser declarado como cínico. Cinismo é ter
fome, é não ter assistência médica, é não ter escola. Cínica é a farsa
política. Cinismo é falar sobre o que jamais conheceu, é não ter um mínimo de
curiosidade em prestar atenção, em não perceber que ao nosso lado existe um
lugar que não conhecemos.
Considero importante a saída da inação para a ação
dirigida para um lugar que nos oferece o discurso futuro. É a palavra dos
esquecidos, dos desafortunados a quem não nos damos ao trabalho de ouvir e,
enquanto não for efetuado esse trajeto, não considero oportuna qualquer
classificação caracterológica. Deixemos de lado aquilo que quiseram que
soubéssemos, e procuremos entender o que devemos saber. Explicações de um só
lado da ponte tem um cunho moralista. Do outro lado há variedades de termos
vestidos com roupas da novidade, de quem não tem tempo a perder, onde o
confronto com o real é absorvido de outra maneira, onde o futuro é o próximo
minuto e não o porvir preparado em berço esplêndido.
A inação serve à psicossíntese. A ação se dirige para
a cultura e é dela que nos interessa falar agora.
Sem autoridade não se reconhece o tributo fundamental
para a existência. Sem a acatação da castração simbólica não se acena a
possibilidade Ética. A psicossíntese – discurso vazio – não
vale, por falta de méritos, aos indivíduos, às Instituições e ao País.
* Psicanalista