Psicanálise de brasileiro
** Isidoro
E. Americano do Brasil
A minha hipótese de trabalho, para pensar,
aqui, hoje, são os dois momentos
Freudianos, os dois possíveis Freuds. Um
Freud sempre preocupado com a organização e com a montagem de uma ficção que
desse conta do aparato psíquico e um Freud interessado e preocupado com a cultura . A cada texto Freudiano, onde uma elaboração
relativa a organização com o
seu aparelho psíquico, com a montagem da
organização do sujeito do inconsciente, Freud produzia sincronicamente um texto
sobre a cultura. Por exemplo, quando elê em 1905, produz
os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em ruptura com todo o pensamento até aí
vigente de uma neutralidade infantil com respeito à sexualidade, elê em seguida produz um texto sobre. Quando elê produz o seu grande texto Para introduzir o narcisismo, nos traz
uma produção da cultura com o Totem e tabu. Quando elê produz a grande ruptura e indica o momento final da sua construção
pulsional, Para além do princípio do prazer,
elê traz Psicologia
das massas e análise do eu. Quando
elê faz a sua contribuição sobre a Feminilidade
ou
sua contribuição nas Conferências
introdutórias, ei-lo trazendo à cena o Porvir de uma ilusão e O mal-estar na cultura. Quando Freud no
final, trabalhando a Análise
terminável/interminável, elê nos dá
o testemunho do seu testamento final que
seria uma leitura da cultura, Moisés e o
monoteísmo.
Então, Freud
é um leitor preocupado com aquilo que se dá no seu divã e um produtor de
saberes sobre o
grande divã da cultura. Elê é um grande pensador da cultura. Inclusive, em torno da década de
20, quando alemães e franceses disputavam ideológicamente a grande
diferença entre cultura e
civilização, em que os franceses diziam que a civilização era o ponto
máximo, a saída natural. Os alemães,
mantinham uma posição bastante rígida e formalizada da noção
de cultura germânica que deveria prevalecer. Freud, no seu texto Mal-estar na civilização
declara: “cultura e civilização
são a mesma coisa”. Para a
época isto era uma questão fundamental, era uma discussão de
veia, uma discussão de principio. Freud
sempre esteve no centro dela. Sempre foi
cuidadoso com a leitura da cultura,
sempre esteve assentado com o seu texto na leitura do que seria essa
saída do natural, a ponto de nos dar
alguns elementos que nos possibilitou ter uma idéia que aquilo que foi
chamado, a partir de 1908, de etnologia, se servir da psicanálise para ficar quase que submetida a uma leitura
psicanalítica para dar conta de suas
questões, quando, por exemplo, elê introduz um fato fundamental na cultura: o sentimento de culpa*. Há um sentimento universal de culpa, que vai
mexer com o mito da cultura, com a história da sua fundação, com aquilo que se
chamou cultura: no início da cultura
está um assassinato. O ultimo mito
criado no ocidente, criado por Freud,
de consequências exorbitantes
e importantes à nossa prática cotidiana, sentados ali atrás do divã, na
leitura que fazemos da cultura ou da
civilização. Depois desse corte de Freud
a discussão praticamente acabou, ou seja
quando elê eleva cultura e
civilização à mesma dimensão, e diz: em ambas, o que as caracterizaria não é se
elas são faladas em francês ou alemão, mas
o que está no último substrato arqueológico da questão é um sentimento
de culpa, um mal-estar, o Super-eu. Civilização, Super-eu e pulsão caminham
juntos.
Duas frases me parecem interessantes em um
texto que elê escreve em 1924 e 25, em um
pós-escrito de 1935, onde diz: “meu interesse, após fazer um détour de uma vida inteira pelas ciências naturais, pela medicina e pela
psicoterapia, voltou-se para os problemas culturais, que a muito me haviam
fascinado, quando eu era um jovem quase sem idade suficiente para pensar”. Aos 79 anos, após passar por muitas
peripécias, retorna ao seu interesse
pela cultura. Isso é importante porque
se nós vamos tentar falar alguma coisa sobre psicanálise de brasileiro, algumas formulações mínimas devem ser
firmadas. O Fabio Lacombe, inclusive, demarcou alguns pontos de reparo, alguns
limites da questão, por exemplo, a
oposição entre o universal e o
particular: seria a psicanálise do universal ou do particular? O universal vale para todos ? A
psicanálise deve ser para cada um e na
sua particularidade poder ser extraída
como uma fonte nova, como um nascedouro.Uma nova conceituação, uma nova questão
ou a psicanálise tem realmente o
estatuto de “ciência” como Lacombe quer, já que os exemplos delê são a música, a matemática? Será que a
psicanálise pode ser toda algorítmica?
Eu posso ir para o Japão sem saber falar uma palavra de Japonês mas, dar aula de matemática, mas eu
não posso ir pro
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* O que é
Civilização?: um sistema. Um sistema pulsional. Ou com Lacan “um sistema de
distribuição de gozo”.
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Japão e dar uma aula de
psicanálise. Eu preciso do discurso para isso. Indo mais além, o japonês
é inanalisável: na sua lingua elê
faz uma transmutação do chinês para uma
leitura japonesa. A água por exemplo ou
o elemento pictórico, ou a grafia, o
ideograma de água é o mesmo para o chinês e para o japonês, mas o
japonês lê distinto,
logo a língua japonesa traz consigo a alíngua, o próprio inconsciente. O inconsciente japonês seria a céu
aberto. Uma das propostas de Lacan é esta:
o japonês é inanalisável porque o seu discurso traz o
seu inconsciente . Eu não posso dizer que o
japonês não é matemático e que elê
não toca música. É uma questão de
particularidade na psicanálise. E quando Freud está
tratando da questão da
cultura elê vai dizer: “a cultura ou a civilização é o questionamento
fundamental da origem”, onde elê
faz a ruptura entre francês e alemão, e
diz: “eu tenho que ir a origem e lá
encontrar alguma coisa que defina
civilização ou cultura, e
saber se é um assassinato, ou uma culpabilidade fundamental
ou um mal-estar (Unbehagen).
Estabelecido o mito fundamental, a
cultura vai desenvolver-se de acordo com
as particularidades de um mito. O mito
do obsessivo não é o mito do histérico,
e reclama o psicótico de um mito para si. Estaria na
origem da cultura distinções que falariam
da sua origem, como, por exemplo, nós encontramos no Brasil, com Gilberto
Freire, em Casa grande e senzala, uma história,
um mito, da origem do Brasil. Nós
temos que nos debruçar sobre a origem do nosso mito, da nossa cultura (ou civilização) e aí
deve estar alguma distinção que caracteriza
o que é ser brasileiro. Ou qual a
formação sintomática que nos caracteriza. Ou ainda, qual a nossa distribuição
particular de gozo. Nós vamos encontrar no grande Mario de Andrade algo que se
aproxima de um significante brasileiro: Macunaíma é um significante brasileiro. Nós vamos encontrar em Osvald de Andrade a proximidade do
estabelecimento de uma lingua pátria que
trás consigo alguns mitos particulares da nossa história, da nossa literatura e
da nossa genialidade de criação. É certo que a “língua brasileira” está
presente no texto de Guimarães
Rosa, mas a língua brasileira de
Guimarães Rosa fala da alíngua brasileira. Fala de uma distinção fundamental da língua do
sertão mineiro, que depende da estrutura
da língua, porque qualquer língua pode
ser traduzida, já que por trás de
qualquer língua há uma estrutura de linguagem, que aparece na fala. A possibilidade de tradução é a
estrutura. Nessa estrutura há uma
historitização de uma certa origem, que define diferenças. Há um universal e há
um particular? Certamente. No nível da
psicanálise “científica” nós temos que trabalhar com essa questão do universal e do
particular.
Mas ficamos ainda com uma outra questão: o universal serve para o particular da psicanálise?
A análise deve repetir os textos
apresentados pelo seu fundador ou qualquer um de seus seguidores? Ou, na
formação de cada analista há de haver a particularidade de uma análise para
cada análise que elê faça? É uma questão que a ciência não se colocaria, que o
matemático não se colocaria, que o músico não se colocaria mas que o analista
por princípio se coloca. Eu fiz
três análises em portugues, uma em francês e não vejo nenhuma grande
diferença nas três ou na outra. Não acho
que a questão é da língua. A questão é da cultura brasileira. Qual é esse
lugar do significante brasileiro que
pode caracterizar uma determinada civilização?
A Maria Helena Junqueira citou o jeitinho brasileiro, o maneirismo. Eu
citei macunaíma e o Gilberto Freire aponta para o
brasileiro, o significante sincrético*,
por exemplo. Não há sincretismo na
psicanálise. Ou se tem psicanálise ou se tem sincretismo. Não há possibilidade de se abordar a
psicanálise por todas as teorias
possíveis: ou eu tenho uma
determinada teoria que posso levar
adiante, ou essa miscelânea dificilmente
poderia ser chamada de psicanálise. Esse significante talvez possa se aproximar daquilo que seria um
significante brasileiro, o sincretismo, elê exclui a psicanálise, a
estudar, a ver-se.
O significante brasileiro Macunaíma
é um significante do qual se poderia dizer que elê já estava na
Grécia, em Atenas, com
Diógenes, já que é o significante
do cinismo, é o significante fundamental
do brasileiro. Diógenes lidava muito bem
com seu superego, sem maiores problemas,
inclusive bastante criticado pelo status
quo ateniense por não ter grandes laços com o que a cultura e a civilização local lhe propunha. Quando Alexandre desce da Macedônia, elê era
fascinado por Diógenes, porque havia
sido educado por Aristóteles. Procura em Atenas por Diógenes e diz:
“Diógenes, o que você quer de mim? Pede
que eu te dou!” E como resposta: “Que
você tire seu cavalo da minha frente porque está fazendo sombra. Eu estou
tomando sol”. Então, é uma questão que
já está presente em Atenas, mas devemos perguntar se ela é característica do
pensamento grego(?). Acho que não. Mas acho que Macunaíma é uma característica
do
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* Sincrético — que contém sin(cr)+ético. A ética
que se joga aí.
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gozo brasileiro. Nós podemos
explorar essa psicanálise do brasileiro num viés Andradiano, com
Mario de Andrade, na vertente Macunaíma. Acho que, por exemplo, quando
Lacan propõe que o Japonês não é
analisável, fica caracterizado um corte. Eu não vejo a
característica fundamental da análise brasileira ser estabelecida por aqueles que praticam aqui
no Brasil, e nesse sentido acho que fundamentalmente para se poder falar de uma experiência da psicanálise de um brasileiro, temos que
tomar um operador da cultura,
que é a neurose. A neurose é um
operador da cultura. A neurose
brasileira se estrutura como a neurose de um francês? A neurose brasileira se estrutura como a
neurose de um norte-americano?* A neurose brasileira se estrutura como a
neurose de um argentino? Esse operador
da psicanálise, neurose, nós já demos
conta delê na dimensão em que, êle, em si nos apresenta? Acho que sim e que há
uma questão da análise de brasileiro. O que há é uma desatenção nossa em prosseguirmos numa investigação nesta direção. Quando a Escola Brasileira de Psicanálise –
Movimento Freudiano escolhe esse nome Brasileira, não é que ela quer ser a única escola do
Brasil, e sim que ela está
preocupada com o significante
brasileiro. Ela está preocupada e investindo em pensar nesse operador da cultura, a neurose, na particularidade apresentada pelo brasileiro. Eu tenho muita dúvida de que
um analista brasileiro e um paciente brasileiro que fazem uma ou duas ou
três vezes (sessões) por semana,
seja a mesma de uma analista de
Londres, que não aceita menos que cinco vezes, seja a mesma de um
analista Francês que não faz menos de
quatro ou cinco vezes. A Maria Helena Junqueira apontou para esse momento da crise e a crise é
oportunidade mais perigo, a fronteira, o
limite das definições se fazem necessárias. Freud atendia pelo menos seis vezes por
semana aos seus pacientes, preocupava-se
com o nervosismo moderno, com a
introdução das máquinas na época
industrial. Época em que em Viena só
existiam dez telefones... Hoje, só o
tempo que uma pessoa perde para ir ao analista seis vezes por semana sugere que ela vai ficar muito mais neurótica
do que era antes. São questões que se
levantam para o brasileiro, específicamente no Rio de Janeiro. Hoje, antes de
começarmos a conferência, o Luiz Antonio Viegas falava
para que começassemos logo, pois
a platéia está com mêdo de ir embora tarde, algo pode acontecer... Já o Freud,
saía da Associação
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* Lembrem-se do Cap. V do Mal-Estar da Civilização onde Freud “não
quer analisar os Americanos”(do norte).
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Médica às 9 horas, depois do seu
seminário de quarta-feira e ia dar uma volta à pé pela Ring Strasse. Hoje, dificilmente eu vou à pé daqui
até a minha casa. Isto quer dizer
que essas consequências e essas situações locais dizem respeito a estrutura da
psicanálise? Acho que sim. O inconsciente muda com o tempo, a
psicanálise muda com o tempo, muda com a geografia e ela têm
particularidade do mito original de uma
cultura e nós temos que ir aos autores
que se preocuparam com isso,
analistas ou não, mas para fazermos a
análise deste brasileiro que aí
está. Quando o Brasil é doado à treze pessoas, aquela canja onde
“não precisa pagar nada e tudo que tirar é delês”, onze faliram! Só dois deram certo. Só a província de Pernambuco e do Espírito
Santo. Isto faz parte do mito da
organização da cultura brasileira. Dessa responsabilidade cínica do
brasileiro. Acho que isso é
constituinte. É diferente da ética
protestante que vigorou na guerra da
secessão. O povo brasileiro não
participou de guerra, e nem
participará. Elê é cínico por
excelência. E é difícil pensar se
Diógenes procuraria análise, mas o brasileiro procura psicanálise,
e se assim o faz devemos dar
conta disso. Brasileiro pode ser um
traço de identificação ou um
traço distintivo? Distintivo não
é o brasileiro, é traço fundante. Traço
fundante da estrutura é o inconsciente estruturado como uma linguagem, ou seja,
passível de ser traduzido, passível de uma interpretação. Isso é o
fundamental. Para além dessa estrutura
ser mantida e ter a possibilidade de transmissão e de tradução há
particularidades. A psicanálise não foi ainda logicizada a ponto de ser algoritmizada: ela depende do discurso. A fala, como vetor da
neurose, como organizador
da cultura, têm especificidade no
brasileiro. A minha proposta final,
porque acho que já falei muito, é a busca da origem (como Freud definiu) da nossa cultura e aí,
então, poderíamos começar a
trabalhar a questão da psicanálise de
brasileiro.
** Psicanalista, fundador da
Escola Brasileira de Psicanálise - Movimento Freudiano.
— Texto apresentado na conferência sobre Psicanálise de Brasileiro, com Fabio Lacombe, Maria Helena Junqueira e Isidoro E. Americano do Brasil, em Maio de 1993.