A PSICANÁLISE HOJE (1983) NO BRASIL
Para comemorar o quarto aniversário, Gradiva (Orgão
Oficial da Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo), reuniu
na residência de seu diretor, Carlos Castellar, cinco
psicanalistas para debater, numa mesa-redonda gravada, o tema Psicanálise Hoje no Brasil.
Durante mais de quatro horas, Galina Schneider, Manoel Thomás
Moreira Lyra, Hélio Pellegrino, José Ibsen de Almeida e
Walderedo Ismael de Oliveira discutiram com muito ânimo
questões relacionadas à sua disciplina, num debate sem
precedentes na história da Psicanálise no Brasil. Os
temas levantados foram desde a repercussão da
situação política nas instituições
analíticas, até questões relacionadas à
formação analítica, passando pelas
transformações ocorridas nos ultimos anos. José
Ibsen de Almeida só pode chegar depois de algum tempo de
iniciada a mesa-redonda, por isso, só começou a
interferir a partir desse momento. Galina Schneider é presidente
da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro,
instituição à qual também pertence
Hélio Pellegrino. Lyra e Walderedo são analistas-didata
da Sociedade Brasileira de Psicanálise, e José Ibsen de
Almeida é do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro.
Participaram dos debates, porém mais como coordenadores, os
analistas Carlos Castellar e Paulo Sternick, respectivamente diretor e
editor-científico de Gradiva.
Castellar - Bem
a idéia hoje era a gente conversar um pouco sobre como é
que cada um de vocês vê a psicanálise brasileira
nesse momento: a psicanálise brasileira dentro do contexto
latino-americano, dentro do contexto internacional, como é que a
gente está vendo as instituições
psicanalíticas, se elas estão correspondendo à
necessidade nacional, enfim, qual é o nosso momento em termos de
psicanálise. Nosso momento em termos
de economia, em termos de política, a gente sabe. Mas em termos
de psicanálise, em nossa opinião as coisas estão
muito pouco definidas. Ultimamente, presenciamos o crescimento de uma
quantidade enorme de sociedades; tivemos a pachorra de contar, e
só no Rio de Janeiro há quinze sociedades que se
intitulam formadoras de psicanalistas. Umas chamam psicoterapia
psicanalítica, outras psicanálise mesmo, e isso só
no Rio de Janeiro, ainda temos São Paulo, Minas, enfim... E como
é que está tudo isso? Como isso é visto por
pessoas não só da experiência de vocês, como
também da posição de liderança que o grupo
todo aqui reunido tem dentro
Pellegrino - Castellar
tem toda razão. A crise da SPRJ, por exemplo, a infelicidade da
velha direção foi total, porque, no momento em que
começava a abertura política, usou-se lá um
recurso que lembrava exatamente o velho fascismo militar. Nós
fomos excluídos de maneira iníqua e perversa, sem direito
de defesa, e isso no momento em que a abertura começava e o
País iniciava sua marcha para a democracia.Tais
circunstâncias tornaram muito evidente a posição de
fechamento da Sociedade e eu tenho certeza de que todo o momento
político brasileiro influenciou e nos ajudou naquilo que
nós conseguimos, se bem que a reintegração se
tenha dado por via judicial.
Lyra - Mas faz parte da abertura também, não é, ...
Pellegrino - Exatamente, faz parte, porque o judiciário é um dos...
Sternick - É.
Isso que o Hélio e Lyra estão trazendo é uma
situação interessante, que é a influência da
situação política do país nas
instituições analíticas, na direção
dessas instituições analíticas, e eu pergunto
até que ponto o clima político, o clima de liberalidade
ou de autoritarismo no país em que está inserida a
psicanálise também não determina clinicamente,
na atitude da relação paciente-analista, da
relação transferencial-contratransferencial, até
que ponto não haveria também uma repercussão disso dentro dos
consultórios. Digamos assim, num país em que se vive sob
a égide do autoritarismo, a posição do analista
não seria também uma posição mais
autoritária?
Lyra - Claro.
Se você quiser, posso lhe dar um exemplo, que vim a saber. Um
analista, inclusive por sugestão de seu supervisor,
ameaçou um cliente que era de esquerda, e que começou a
manifestar interesse em se filiar à uma
organização política, ou estudantil, enfim...
Quando ele falou isso na análise, o analista, o analista disse:
“Se você fizer isso, eu corto a análise”. Isso
não é atender ao paciente.
Pellegrino - Exato,
mas isso é exatamente uma posição absolutamente
não-analítica, não é? E, para responder a
sua pergunta, eu não sei, eu acho
Sternick - Hélio, para tornar mais realista e menos ingênua essa colocação, por
Lyra - Eu não disse nem o “extrema” que você está botando...
Sternick - Pois
é, se for. Vamos tomar a coisa assim: se fosse um período
de guerra armada, de tortura, etc, de violação de lares
etc, se fosse isso, o analista poderia até dizer: “Olhe
sua vinculação com uma organização
supostamente de extrema esquerda...”
Pellegrino - Eu tenho medo de atender você!
Sternick - ...“Vai
colocar em risco o nosso trabalho aqui.” Isso é uma coisa.
Outra coisa é dizer: “Se você se aliar a uma
organização assim ou assado, eu corto a sua
análise”, isso é outro assunto...
Pellegrino - Quer
dizer: “eu fuzilo você!” Pois é, que o
analista tenha medo, muito que bem. Se o Leão Cabernite tivesse
me dito: “eu mantive o Amilcar Lobo por medo”, eu o
respeitaria, certo? Ele
nunca teve a hombridade de me dizer isso! Eu não sei sequer se
foi esse o motivo que levou o Leão Cabernite a proteger o
Amílcar Lobo, e a Sociedade Psicanalítica a proteger o
Amílcar... O Amilcar ficou durante seis anos como candidato, em
situação irregular sem que se tomasse nenhuma
Galina - Acho que não é medo, não. Acho que é onipotência.
Pellegrino - Não
é onipotência, não. É fascismo. Se
não foi medo, foi fascismo. Vamos botar as coisas claras: ou
é medo, ou é fascismo. Eu preferiria que fosse medo.
Galina - Eu acho que é onipotência.
Pellegrino - Sim, mas porque onipotência? Eu gostaria que você me esclarecesse.
Galina - Porque ele achava que tudo isso é resolvido em análise.
Pellegrino - Mas como? Até institucionalmente ele estava fora do lugar! Ele esteve seis anos fora dos estatutos!
Galina - Eu estou falando do tempo que ele esteve dentro.
Pellegrino - Dentro da Sociedade ele esteve em condições anormais, sem análise durante seis anos.
Castellar - Hélio, deixa a Galina dizer o pensamento dela.
Galina - Eu
quero falar de outra coisa relacionada a isso. Eu acho que o colapso,
digamos assim, da nossa Sociedade, da estrutura da nossa Sociedade, foi
devido à falsa idéia de que se pode manter a sociedade
psicanalítica isolada da comunidade. A psicanálise
não é uma coisa pura que a gente possa preservar numa
espécie de torre de marfim, fechadinha e incontaminável,
mantendo aquelas regrinhas. E acha-se que o resto do que acontece
não tem nenhuma influência sobre a gente, por isso foi que
eu falei em onipotência.
Pellegrino - E isso é correto: a falsa assepsia...
Galina - ... a falsa assepsia...
Pellegrino - Não, mas não havia só falsa assepsia lá!
Galina - ...
Não existe essa assepsia, porque o contexto mais amplo em que
está inserida uma sociedade psicanalítica tem uma
influência profunda sobre a vida de uma instituição
psicanalítica, e ignorar isso, negar isso leva a essas
discrepâncias e a essas rupturas, porque é negar a
realidade.
Lyra - Eu gostaria de fazer só um comentário, pode?
Pellegrino - Claro!
Lyra - Eu
acho que falar em onipotência fica muito claro. Essa pessoa que
diz que se o paciente se ligar a qualquer organização de
esquerda, o sujeito corta a análise dele, então ele
não está sendo onipotente?
Galina - Pelo menos prepotente.
Lyra - Então
o que ele está sendo? Ele está dizendo: eu não
posso analisar alguém que é contaminado com algumas
idéias esquerdistas, ou
Galina - A onipotência sempre é fascista, vamos levá-la muito a sério.
Lyra - A
onipotência tem várias tonalidades, várias cores,
eu acho. É interessante analisar esse negócio de
onipotência, mas se a gente considerar... Então, o
Amílcar Lobo fica lá. Muita gente da nossa sociedade,
inclusive, sofreu mais. Acho que a nossa sociedade sofreu por causa do
Amílcar Lobo. Foram intimidados, foram entrevistados pelo SNI...
Pellegrino - Exato, a Helena Viana passou muitos maus momentos...
Lyra - É,
a Helena Viana foi intimidada, ameaçada, levada a um
interrogatório tipo policial, foi denunciada ao SNI por colegas
nossos, fascistas. Mas quem a derrubou foi esse grupo que se uniu, essa
gente que está... então, com a chapa nova, primeira vez
que fizeram uma chapa de oposição, então,
alguém teve um enfarte. E eu acho que tem muita
onipotência nesse negócio. Por exemplo, o analista ouviu o
paciente dizer que tinha visto policiais torturando alguém. Mas,
em nome do princípio de que a gente quer ver a realidade
interna, e não a externa, disse: “Você não
ouviu nada, você não viu nada”. Então,
é assim o sujeito passa ao extremo de negar a realidade externa,
em nome de um princípio saudável de que a gente
não vai lidar com a realidade externa.
Galina - Não
é um princípio saudável, Lyra, esse não
é um princípio saudável. Eu acho que a
análise não é só lidar com a realidade
interna. Eu acho que é ver como o sujeito lida com a realidade
interna e como é que lida com a realidade externa, e como se
relacionam essas duas coisas.
Lyra - Não,
Galina, eu acho que sob o ponto de vista de linha psicanalítica,
que eu quero dizer, eu acho que realmente a análise deve lidar
com a realidade interna, e é através de lidar com a
realidade interna e com as fantasias que se tem, que obscurecem a
objetividade da percepção da realidade externa, que a
pessoa vai melhorar sua percepção. Uma pessoa diz:
“o trânsito está interrompido”, e você
pode achar que o trânsito está interrompido dentro dela,
porque a pessoa está dizendo isso; você tem o
direito
de fazer isso, pois o que é saudável é isso:
é que você fica com a percepção da realidade
externa distorcida pelas fantasias todas que existem, pela
onipotência, pelo pensamento mágico, essas coisas, essas
relações todas... Agora, se você lida com essas
situações e consegue uma melhora disso, há menos
projeção, há menos identificação
projetiva... e aí a pessoa pode olhar nitidamente. A realidade
externa pode ser olhada mais objetivamente. Então, o
relacionamento da pessoa com a realidade externa
Pellegrino - É
uma distorção com uma direção muito
certeira, porque é uma distorção no sentido de
apoiar o poder e a tortura.
Sternick - É
considerar a realidade interna para impedir de se ver a realidade
externa, e não para ajudar a vê-la melhor.
Galina - ...a externa é jogada no lixo, e esse é que é o perigo.
Sternick - Agora , eu gostaria de levantar um ponto: o Lyra disse que membros da Brasileira denunciaram colegas ao SNI? Isso aconteceu?
Lyra - É
aconteceu. Aconteceu. Isso foi apresentado à Assembléia
Extraordinária contínua que a gente tinha toda noite,
durante muito tempo, e foi discutido, e há muitas atas que
temos... Houve denúncias, a princípio começou com
o negócio da Helena. A Helena Viana teria uma carta que teria
sido escrita por alguém, manuscrita...
Pellegrino - Não. Foi mandado um jornal clandestino para Buenos Aires, com uma observação escrita à margem...
Lyra - É isso mesmo...
Pellegrino - ...e
nesse jornal se denunciava o Amilcar como membro de uma equipe de
tortura. Esse jornal, não sei porque meios, veio ter às
mãos do Leão Cabernite, e o Leão providenciou um
exame grafológico que teria permitido a acusação
da Helena Viana como possível autora dessa
observação à margem do jornal. Então, a
partir daí, ela foi muito maltratada, inclusive foi chamada...
Lyra - Formaram
uma espécie de pequeno tribunal de inquisição, que
era o conselho daquele tempo, e esse Conselho continha uma pessoa que
tinha dois parentes próximos da família que eram membros
do SNI, e que intimidou a Helena, dizendo que ela tinha que fazer
não sei o quê, ou tinha que não fazer não
sei o quê, uma porção de coisas. Intimidaram ela,
disseram que ela iria ser cortada da Sociedade e entregue ao DOPS, um
negócio assim. Uma dessas pessoas, um desses colegas, era uma
pessoa que tinha dois genros no SNI. Quando foi denunciado isso, sua
reação foi: “Eu não sei o que é SNI!
Nunca ouvi falar em SNI!”. E esse camarada que tinha dois genros
no SNI, o que ele falou na ocasião da reunião da
Comissão de Ensino foi que ele não sabia o que era SNI,
nunca ouviu falar no SNI. Então, o pessoal achou muito estranho
e uma das pessoas disse, “Mas, Dr.
Pellegrino - É,
eu acho que essas coisas são importantes porque mostram o
seguinte: felizmente, as coisas todas melhoraram muitíssimo. Eu
acredito que na Brasileira tenham melhorado muitíssimo, e na
nossa Sociedade também. Porque, na verdade, quando você
fala de assepsia, que as sociedades eram fechadas e assépticas,
eu não creio que fossem assépticas.
Galina - Não, ...faziam de conta!...
Pellegrino - No
tempo do velho poder... é, elas não eram
assépticas, muito pelo contrário: era um ambiente muito
carregadamente contaminado, muito autoritário.
Castellar - Era uma falsa assepsia...
Pellegrino - ...uma
falsa assepsia! Era um ambiente seriamente contaminado, a ponto de
haver permanentemente, em atividade, uma defesa
esquizo-paranóide. Eu acho que a grande conquista da
psicanálise brasileira, no momento, pode ser caracterizada a
partir da crise que a SPRJ viveu. Qual foi a essência dessa
crise? Foi a impossibilidade de suportar a dialética, de
suportar a contradição. Do momento em que nós,
Mascarenhas e eu, representamos, na velha Sociedade, o pólo da
contradição, fomos simplesmente cortados! Cortados por
delito de opinião, sem direito de defesa! Isso mostra até
que ponto havia um clima esquizo-paranóide. Tivemos que recorrer
à justiça, e isto é alarmante numa sociedade de
psicanálise, porque deveria haver um lugar para que nós
pudéssemos discutir os problemas, para que a lei pudesse existir
lá dentro. Nós tivemos que recorrer à lei de fora.
E, finalmente, conseguimos reintroduzir na Sociedade exatamente o dissenso. E hoje, o clima da Sociedade é
um clima de embate, mas é um clima muito produtivo, porque
podemos nos desentender democraticamente, dentro da Sociedade.
Castellar - Mas você acha que isso motivou essa enxurrada de Sociedades psicanalíticas...
Pellegrino - Não, não, eu acho o seguinte... em parte, sim...
Lyra - É, esse é um ponto que a gente deve tomar agora...
Pellegrino - Acho o seguinte: acho que as velhas sociedades tradicionais ligadas à IPA – a Rio de Janeiro e a Brasileira – perderam
a hegemonia tranqüila, perderam a hegemonia adiposa, a hegemonia
preguiçosa, porque o Brasil cresceu muito, porque os
psicólogos entraram no mercado, porque
Castellar - E
a Brasileira mandou uma carta dizendo que era para não atender
psicólogo, que era para ele não aprender a técnica.
Pellegrino - Exatamente. E inclusive se chegou ao ponto...
Galina - Novamente, negação da realidade.
Pellegrino - Negação da Realidade, exatamente! A onipotência.
Galina - Por
isso é que eu digo, as instituições... Eu concordo
com o Dr. Lyra em que o trabalho analítico é trabalhar a
realidade interna, mas as instituições
psicanalíticas não podem ignorar a realidade externa.
Pellegrino - Mas claro! Claro!
Lyra - Trabalhar a realidade interna não é fechar os olhos, não.
Sternick - Eu queria que o Dr. Walderedo falasse...
Pellegrino - O Walderedo é sábio: ele fala depois de ouvir, o que é a boa sabedoria...
Sternick - Está dando uma de mineiro, o Walderedo, não é?
Walderedo - Foi
proposto que conversássemos sobre a situação da
psicanálise no Brasil, não é? E como nós
estamos, queiramos ou não, vinculados às duas Sociedades,
imediatamente a discussão se encaminhou para um debate em torno,
para que conversássemos em torno das respectivas crises, na
Sociedade Psicanalítica e na Brasileira, temas que já
são bastante conhecidos. Agora, eu gostaria de colocar uma
posição, e eu sou, nesse ponto, mais conservador,
porém, me acho revolucionário. Não sei, isso
parece uma contradição, mas eu sou assim. É o
seguinte: eu entendo que a psicanálise não tem
política. A psicanálise é uma ciência de
investigação da mente, é uma ciência da
mente, mais propriamente da mente inconsciente. Enquanto isso, ela
convive com fenômenos da magia, da onipotência, do real, do
imaginário etc. Não é isso? Com isso também
eu até discutiria como é que se define o cientificismo da
psicanálise, com referência aos parâmetros das
chamadas ciências exatas, que são as ciências
realmente.
Então,
lidando com esse mundo irracional, o analista, evidentemente,
está constantemente mergulhado e participando dos registros que
determinam esse sistema. Tanto Fenichel diz que a psicanálise
lida com o irracional, e que ela difere dos outros métodos
porque a psicanálise o faz de uma maneira científica. Mas
como a psicanálise o faz de maneira científica, se, na
relação analítica, o sujeito não se coloca
de maneira científica, ele se
Pellegrino - Ela põe a realidade entre parênteses.
Walderedo - Então,
veja bem, é como eu vejo a psicanálise. Agora, e o
analista? Os analistas se organizam em sociedades científicas, e
aí vem a outra dimensão, a psicanálise como
“movimento psicanalítico”. Então, aqui
é que a coisa pega e sabemos que, desde o início, o
movimento psicanalítico foi marcado sempre por crises de
política interna do grupo psicanalítico. Esta é a
política que diz respeito ao analista enquanto analista. A outra
ele deve assumi-la como um cidadão qualquer. Ele, no entanto,
não pode ser um direitista, ou reacionário.
Galina - A política são essas várias instituições, aí vem a política.
Walderedo - As
instituições psicanalíticas, não é?
Desde as agregações iniciais que a psicanálise foi
marcada por essas políticas ligadas ao seu próprio
movimento de expansão. E, se a gente investiga um pouco,
verifica que, mesmo havendo dissenções de ordem
teórica e divergências científicas, o que marcou
mesmo as crises foram rivalidades pessoais de ciúmes, coisas
irracionais.
Então,
eu faço uma distinção. Primeiro, deixar a
psicanálise, seja teoria ou clínica, de um lado, e
considerar como seu veículo de expansão a
instituição ou organização que promove a
parte política e a difusão da psicanálise, isto
é, a sociedade psicanalítica. Então, aí
é que vem a minha colocação. Mesmo parecendo um
conservador, eu me considerei sempre um revolucionário,
interessado no maior conhecimento do homem. Mas eu penso o seguinte: eu
não consigo ver uma sociedade psicanalítica que queira,
por exemplo , ser democrática, com isso implicando no abandono
das normas tradicionais da formação do psicanalista. O
rigor científico deve vir antes da ambição do
poder.
Pellegrino - A
democracia, Walderedo, é a possibilidade de você
discordar. Na velha Sociedade, fomos expulsos por delito de
opinião. Fomos feridos nos nossos direitos cívicos. Nesse
ambiente, a psicanálise não pode advir. De resto,
não poderia advir nenhuma ciência, porque o ambiente era
perverso.
Walderedo - Hélio,
você precisa ver o seguinte: queiramos, ou não, a
sociedade psicanalítica é uma sociedade meio primitiva,
hermética, quer dizer, regida ou movida também por
forças muito irracionais. É difícil a
Pellegrino - Mas,
Walderedo, então você diria o seguinte: quanto mais
você conhece o inconsciente, mais irracional você fica?
Então, quanto mais você convive com o inconsciente, mais
irracional você fica? Nós teríamos, ao
contrário, que ter uma sociedade menos conflituada do que outras
sociedades, porque conhecemos as forças inconscientes que
também obram nelas. Então, isso não é uma
desvantagem, é uma vantagem.
Walderedo - Veja
bem: eu tenho cautela ao falar; porque os meus pontos de vista e as
minhas enunciações sobre, por exemplo, o desenvolvimento
que se tem observado na Sociedade Brasileira de Psicanálise no
sentido de democratização, de reformas etc, parece-me
que, paradoxalmente, vai nos levando para uma situação
que promete reduzir com a psicanálise a um nível bastante
pobre, digamos, em cinco anos na instituição. Assim, se
consegue acabar com a psicanálise. E você vê por
exemplo, o que vai ocorrer
Pellegrino - Mas por que razão? Estou ouvindo o Walderedo falar e tenho a sensação de um déja-vu (déja:
entendeu). Mas é estranho que vocês me digam que ele
está falando da situação presente na sua sociedade.
Ibsen - Que
relação você estabelece entre a
formação psicanalítica e as sociedades
psicanalíticas?
Walderedo - É
fundamental. Fundamental, porque da formação, da
qualidade de formação depende a sociedade
psicanalítica. A formação é um viveiro
natural de psicanalistas. Então, se eles são mal
formados, evidentemente as sociedades pagarão por isso.
Ibsen - Mas,
Walderedo, voltando àquele ponto, eu continuo com uma
dúvida, porque eu acho que é impossível existir
psicanalista e sociedade formadora de psicanalista. Eu acho que a
sociedade pode informar sobre psicanálise, mas não acredito que uma sociedade possa formar
Walderedo - Nós
na Sociedade tínhamos a antiga Comissão de Ensino, que
era constituída por nove analistas, de certo modo um pouco
autocrática, meio feudal, idiossincrásica. A
Comissão de Ensino era uma estrutura fechada do mundo, e as
pessoas divergiam mais por coisas catatímicas e pessoais, do que
por causas racionais e científicas ou de ensino.
Sternick - O que era ser “autocrática e feudal”, por exemplo? O que era isso?
Walderedo - Por
exemplo, eu tenho um candidato que terminou a formação.
Então, a comissão era de nove. O candidato preencheu
todas as exigências do currículo. Então, três
pessoas ali votaram contra esse candidato, que tinha feito a
formação, tinha sido aprovado. Ele foi reprovado,
não foi aceito como analista. É um caso concreto.
Então, três didatas decidiram o destino de uma pessoa. Veja
bem: essa velha Comissão de Ensino realmente tinha poderes
excessivos e decidia coisas como essa, e outras. A gente sabe disso,
não é? Absurdas, não é? Eu posso até
me gabar, e acho que o Lyra também, de que nesse ponto eu fui
muito objetivo e deixei de lado minhas simpatias pessoais e
políticas e nunca fiz essas coisas. Mas fizeram isso lá.
Pellegrino - Isso é grave. Isso mostra a falência desse sistema.
Walderedo - Num
primeiro momento, houve uma revolução. Numa noite famosa
lá, nos idos de 1979 ou 1978, se modificou a estrutura, a
organização dessa comissão. A Comissão de
Ensino, que era aquele grupo fechado, autocrático, se expandiu e
se nomearam 21 analistas didatas. Não foi isso? Foi: 21
analistas com funções didáticas. Isso foi um passo
formidável, fantástico. Significou uma mudança
radical. Diluiu-se aquele poder, aquela coisa intolerante,
autoritária.
Pellegrino - Quer
dizer, foi um passo necessaríssimo, mas não suficiente,
porque é necessário abolir o estatuto do didata, uma vez
que esse estatuto do didata, uma vez que
Walderedo - Então,
veja bem: isso foi uma coisa significativa e importante para a
sociedade, quer dizer, 21 pessoas estavam credenciadas e podiam fazer
análise didática. Muito bem. A partir daí se
processaram modificações, de que eu confesso que nem
estou a par direito, porque foram tantas e se escreveu tanto. Acho que,
realmente, passou-se para uma
Pellegrino - Não, mas o analista didata não é professor: ele faz a análise do candidato e a análise do candidato não é diferente de uma análise terapêutica.
Walderedo - Evidentemente
que não... Casualmente eu me sinto muito à vontade para
falar isso porque sou daqueles que, quando uma pessoa vem me procurar
como candidato para fazer análise, eu respondo que não
sei o que é isso. Eu procuro fazer análise, não
é? Quando o sujeito insiste muito, “Ah, mas eu queria
fazer curso” etc., eu digo, bom, você vai fazer uma
análise; a
análise vai servir para a sua vida, para várias coisas,
talvez até sirva para esse curso que você quer fazer,
não é? Mas não tem nada a ver com o curso,
é claro. O que eu quero dizer é o seguinte: o
critério de cinco anos, sem outra avaliação,
é realmente abusivo, e a breve termo vai prejudicar a
formação de analistas.
Sternick - Você acha que a pessoa é pouco experiente para dar uma “formação”?
Walderedo - Não,
não, mas eu tenho em mente aqui uma, duas, três, quatro
pessoas que têm cinco anos já, e que consta lá:
pode fazer análise de candidatos. O primeiro não vai a
Sociedade nunca, nunca apareceu lá, não se interessa. O
segundo: encontrei-o na rua, uns três ou quatro meses
atrás: “como vai fulano? E a Sociedade?”. “Eu
nunca mais fui naquela droga, não me interessa e não vou
lá”. O terceiro: uma pessoa que é um grande amigo
meu, mas que não se interessa, nunca foi lá, etc.
Então, esse critério é absurdo e empobrecedor.
Pellegrino - Mas
o candidato não vai procurá-lo, Walderedo! Ele vai gastar
muito dinheiro! O candidato procura os sujeitos que sejam competentes,
certo? O candidato não vai pagar...
Walderedo - Veja
bem: não é assim, as turmas que estão entrando
são enormes, o Instituto já não fornece
condições suficientes para dar um bom curso de
psicanalistas, porque não tem professores, não tem
condições materiais nem intelectuais, nem
didáticas para isso...
Walderedo - É, não tem.
Lyra - A abertura foi perversa. Faça-se tudo aberto agora (...) qualquer negócio.
Walderedo - Veja
bem, acabaram a Comissão de Ensino e instituíram, por
exemplo, os chamados grupos de acompanhamento. Uma tríade, um
tripé, três analistas se encarregam de acompanhar os
candidatos. Uma vez por mês, então, tem aquela Via Sacra
dos candidatos, e eles têm que ir lá prestar contas
àquela comissão de como estão trabalhando, como
está a supervisão etc. De maneira que criaram uma
burocracia, uma tecnocracia...
Lyra - Mas
quem criou isso, quem? Alguém chegou e disse assim: “eu
bato e arrebento para fazer dessa sociedade
democrática”... Uma perversão da abertura para uma
permissividade.
Walderedo - Pergunto-me
se não era melhor a estrutura arcaica e mesmo um tanto
conservadora da comissão de ensino. Ela não chegava a
perturbar a qualidade do ensino e até ensinava melhor.
Castellar - Eu
acho que o problema da análise pessoal não tem muito a
ver com o problema da formação psicanalítica. Eu
acho que a análise é uma coisa. É evidente que ela vai repercutir na formação, em função do comportamento que aquele indivíduo vai ter não
só dentro da sociedade, como fora dela. Agora, o que realmente
confere a condição de analista a uma pessoa é a
sua produtividade, é a sua atuação dentro daquela
sociedade onde ela tem compromissos com seus pares, e a
repercussão que isso tem em termos da sociedade em geral.
Então, o problema não é da análise pessoal
exclusivamente; é de como esse indivíduo vai produzir
dentro da sociedade. Isso é que vai dar a ele um status de
analista ou não. Não é a sua análise,
exclusivamente. É evidente que a análise tem um peso
nisso. E se ele não tiver uma boa análise? E se ele
não tiver um bom desempenho dentro da sociedade, ele não
chega ao título! O que acontece é que o título
é dado de maneira muito burocrática dentro das
sociedades, e não através de uma produção
realmente científica das pessoas.
Walderedo - Eu
estava com a palavra. Agora, quanto a minha visão do analista
enquanto político, a política mais ampla, fora da
sociedade.
Lyra - Isso é importante.
Walderedo - Eu
acho o seguinte: que o analista , enquanto analista, não
é político. Mas a visão que ele tem do seu mundo
interno e da realidade só pode levá-lo a uma
posição mais liberal, progressista e até
revolucionária frente ao mundo. Agora, ele, ao praticar isso,
não o está fazendo, porque
Ibsen - Perfeito, eu também acho... mas psicanalista não é pessoa.
Lyra - Olha, Castellar, eu acho que todos nós somos políticos,
em qualquer organização, em qualquer
situação... Mesmo quando a gente se omite, essa é
uma maneira de ser político. Agora, tem uma política
legítima dentro da sociedade, que é esse negócio
que o Hélio estava falando, que é poder conviver...
Pellegrino - ...com as contradições.
Lyra - ...com
as divergências, com a diversidade. Agora, aconteceu na nossa
sociedade que foi assim: apareceu lá uma pessoa que fez como o
Figueiredo - “eu bato e arrebento aqui para fazer desse negócio uma democracia absoluta”...
Walderedo - Então você concorda comigo, está vendo?
Galina - Na
democracia, o indivíduo tem funções, encargos,
só que ele não pode fazer isso autocraticamente; ele tem
que dar as contas do que ele faz. Eu acho que há muita
confusão. O que muita gente chama de democracia às vezes
é anarquia, e anarquia não é democracia.
Pellegrino - Não.
Se uma instituição vota, e por voto da maioria dos seus
sócios... Por exemplo, na nossa Sociedade, votaram os
barões: votaram 18. Eu fui excluido por 18, e havia na Sociedade
cento e tantos analistas que não votavam, pois não havia
voto do Membro Associado. Isso é um absurdo! E não tem
nada a ver com psicanálise nenhuma! Isso era uma
restrição do espaço do poder para permitir exatamente o autocratismo, entende? Quando conseguimos o voto do Associado, democratizamos a Sociedade.
Walderedo - Sabe,
Lyra, eu estou preocupado com isso quando eu falo, é que eu
tenho medo de estar falando e você estar pensando que sou
quadrado, conservador.
Lyra - ...não,
você... eu não sei se sou quadrado, se sou conservador, se
sou direitista, ou esquerdista... Eu acho que a gente é tudo
isso. Só um fato que eu gostaria de falar, que deve ser do
conhecimento de muita gente: uma vez, uma supervisionanda minha, uma
colega estava trazendo um material e eu olhei para ela e disse
assim:”Escuta, Fulana, você é onipotente?” E
ela: “Eu não! Como é que o senhor me pergunta uma
coisa dessas?” E eu disse:
Pellegrino - Exato, dialetizar o curso do psiquismo, aceitar a dialética da marcha do psiquismo.
Galina - Pois
é. E a diculdade da democracia, ou do que se pode chamar de
democracia numa instituição psicanalítica,
é que como disse o Walderedo, nós vivemos muito o
processo primário; isso
já é um vício, e nós temos muita
dificuldade em sair dessa posição e adotar uma outra de
cidadão da sociedade, de obter o respeito mútuo...
Lyra - ...um
ponto em que a Galina entrou aí, sobre a onipotência,
sobre a realidade externa, não negar a realidade externa... A
gente vive no processo primário na medida em que a gente se
entrega a ele, em vez de olhar para ele e poder conviver...
Galina - Pois é, mas parece que muitos analistas se entregam, e transferem isso para a instituição...
Pellegrino - ...instituição
psicanalítica é, frequentemente, um aparelho
ideológico de estado, no sentido althusseriano. Por exemplo, a
formação psicanalítica, e, mais particularmente, o
didata: ele não se justifica teoricamente, uma vez que
não há nenhuma diferença entre a análise
dita didática, do candidato, e a análise
terapêutica.
Galina - Não concordo. Eu acho que há diferença.
Pellegrino - Substancialmente,
não. Eu gostaria então que você defendesse
teoricamente a tese de que a análise do candidato é
qualitativamente diferente da análise do cliente.
Galina - É diferente...
Lyra - Eu também concordo com Galina, às vezes...
Pellegrino - Diferente, mas não substancialmente.
Galina - Eu
acho que o paciente vem para se tratar, tratar dos seus problemas, de
si mesmo, independente de qualquer compromisso com a
instituição psicanalítica. O candidato vem para se
tornar analista, e isso muda muita coisa.
Pellegrino - Não muda, não. Não muda essencialmente, não.
Galina - Bom,
você pode não concordar. Muda. Muda, pelo seguinte: porque
sempre existe um terceiro elemento dentro dessa análise, que
é a instituição, que é a
formação...
Pellegrino - Mas é um elemento imaginário!
Galina - ...que é partilhado pelos dois.
Pellegrino - Mas o terceiro elemento é imaginário, Galina!
(confusão geral)
Lyra - Olha aí, a Galina acha que...
Galina - É diferente, é diferente...
Ibsen - Mas eu queria dar um exemplo pessoal. E se alguém a procura, na condição de paciente...
Galina - É diferente...
Ibsen - Espera
aí, calma. E depois de algum tempo, como aconteceu comigo,
depois de algum tempo surge o desejo de ser psicanalista. Como é
que ficaria isso dentro do quadro que você descreveu?
Galina - Não, é diferente...
Ibsen - Ao
contrário, falta a diferença. Trata-se de uma
situação especular, dual. Mas o terceiro, Galina, o
terceiro é a lei, o terceiro é a ordem do
simbólico, o terceiro é o corte que instaura a
diferença, o terceiro não é a
instituição... (Galina fala ao mesmo tempo).
Galina - ...Se
você ignora esse terceiro, finge que ele não existe, ou
que ele é apenas da ordem do imaginário e não uma
realidade, então a análise vai para a cucuia...
Pellegrino - Não
vai para a cucuia, não! A análise vai para a cucuia
quando entre um terceiro termo imaginário que leva o analista a
trabalhar cheio de memória e de desejo, porque é um
burocrata representante da instituição. Você
entendeu? Se você institucionaliza a análise, a
análise vai para a cucuia, porque o analista representa um
discurso que não é o discurso do desejo do paciente!
Galina - Hélio, você não pode ouvir, não? Só pode falar?
Pellegrino - Não é verdade. Você é quem está com a palavra!
Castellar - Vou dar um exemplo pessoal. Eu comecei uma análise pessoal...
Lyra - Ah!, exemplo pessoal é muito bom!
Castellar - ...comecei
uma análise pessoal e, três anos depois, eu decidi que
queria ser analista. Aí fui obrigado a abandonar a minha
analista, aqui presente, e mudar de analista, que eu não queria.
Pellegrino - Isso é um absurdo!
Ibsen - Completo,
eu acho, e é muito mais frequente do que se imagina, e o pior,
é que nos submetemos a subordinar a psicanálise aos
ditames da instituição.
Lyra - Pois
é, mas eu tomei uma pessoa em análise, que veio para
fazer formação. Então, eu era didata, ele se
inscreveu, foi aprovado no Instituto
Pellegrino - Mas
você foi juiz dele! Isso é um absurdo! O analista
não pode julgar um paciente! Se você é juiz do seu
candidato, você como analista é fundamentalmente...
Lyra - Espera aí, Hélio, você não está entendendo...
Pellegrino - ...você
não pode julgar seu paciente! É uma
deformação institucional. Eu acho que o analista se torna
juiz do seu candidato! É uma deformação
gravíssíma!...
Galina - Não adianta dirigir-se a mim, que eu jamais fiz isso!
Lyra - Espera aí, deixa eu fazer uma pergunta...
Galina - Eu nunca opinei sobre um candidato!
Pellegrino - Galina, você está perseguida. Não me dirigi a você, eu estou falando com o Lyra, você me perdoe.
Galina - Não, porque você está olhando...
Pellegrino - Não
posso olhar para você? Você quer que eu fale de viseira?
Você está perseguida, e por isso, implica comigo...
Lyra - Oh!, rapaz, espera aí.
Sternick - Deixa o Lyra falar, deixa o Lyra se defender...
Ibsen - ...é discurso ou é fala, hein?
Lyra - O
que é que esse candidato, essa pessoa que foi aprovada por todo
o mundo no Conselho, na Comissão de Ensino, nas entrevistas e
outras coisas, podia fazer, se ele não tinha
condições? Bom, isso é uma coisa que acontece!
Essa pessoa tinha um certo grau de atividade homossexual
ego-sintônica, em que ele só ficava chateado quando as
coisas não iam muito bem e tal, ...(ininteligível) e que
só depois de muitos anos é que ele começou a
revelar, e depois a gente verificou que ele voltava outra vez para as
duas situações. Então, ele era capaz de fazer
várias coisas: de administrar os bens dele, porque ele era
casado, tinha família, tinha vários filhos, e ele foi...
voltou para fazer essas coisas. Mas, para fazer análise,
mantendo uma atividade homossexual ego-sintônica? Quer dizer que
ele aceita? Há quem diga que é preconceito. Mas como
é preconceito? Não sei. Se é preconceito
Ibsen - Tem
pessoas que eu conheço que julgam analistas 24 horas por dia.
Tem outras pessoas que são menos presunçosas e que se
julgam analistas apenas durante as 24 horas de cada 50 minutos. Agora,
eu pergunto: o analista é pessoa? Qual é a
relação que existe entre, vamos dizer, os efeitos
interpretativos, os efeitos de lugar, de estrutura, do discurso da
psicanálise e a pessoa, o cidadão que porta esse
discurso? Essa é uma indagação. E a outra: eu acho
que a sociedade psicanalítica, o instituto de psicanálise
não tem nada a ver com formação de analista. Quem
forma analista é a análise e o desejo de analista. A
transmissão se dá através da transferência,
lugar da verdade, e é confirmada pelo reconhecimento de
pacientes que o procuram como psicanalista, que vai prestar contas
disso através da transferência e da
apresentação de trabalhos teóricos,
seminários, etc.
Lyra - Mas não faz diferença...
Ibsen - Eu acho que faz. Trata-se da própria diferença.
Lyra - Eu
pensava que você estava falando do caso concreto que eu citei.
Mas, voltando. Chegou um ponto em que a instituição
aprovou. Tudo, todo mundo aprovou. E eu disse: já que
vocês todos aprovaram, eu preciso dizer que essa pessoa
não pode ser analista. Eu não me responsabilizo... eu
veto...
Pellegrino - E
você agiu corretamente enquanto membro da
instituição! Mas não como analista. É essa
a contradição inevitável.
Castellar - ...queria
colocar uma questão importante: o que é que confere esse
título de psicanalista? Quem é que confere o
título de psicanalista?
Lyra - Aí está! Aí está uma pergunta...
Galina - ...o
que confere o título de psicanalista é a credibilidade...
não basta ele dizer que é. É preciso que os outros
reconheçam...
Ibsen - Mas é o que eu estou dizendo, é o que eu estou dizendo. É a questão do autorizar-se, da garantia.
Galina - Não
basta o indivíduo ter uma boa clínica, porque, como
você disse, Lyra, isso não prova que é analista. O
que confere ao indivíduo o título de analista é a
credibilidade, é o reconhecimento dos seus pares que o
aceitam... como tal.
Pellegrino - É o aval de uma sociedade confiável também: isso é fundamental! a
IPA e a SPRJ são instituições inseridas no tecido
social. Elas reconhecem o seu título, a partir desse
vértice. Todo o trabalho tem uma dimensão social; nesta
medida tem que ter um reconhecimento social! O trabalho não
é uma atividade autista. O trabalho é uma realidade
social e, como tal, ele tem que ser reconhecido socialmente.
Ibsen - Mas
uma instituição formada nos moldes universitários,
é impossível conviver com a psicanálise.
Daí eu discordar dessa abordagem.
Pellegrino - Estou de acordo! Vamos mudar essa instituição! Vamos lutar para mudá-la. Exatamente, estou de acordo.
Sternick - Lyra,
duas perguntas, curtas e uma ligada à outra: você acha que
pertencer à uma instituição analítica
confere a alguém a capacidade de ser psicanalista? Dá a
alguém a garantia de ser psicanalista?
Lyra - De jeito nenhum. Pertencer à instituição? Não.
Sternick - Você acha que não pertencer à instituição não dá a alguém a capacidade de ser psicanalista?
Lyra - Geralmente, não dá.
Sternick - Pode haver psicanalista sem pertencer à uma instituição?
Lyra - Pode.
Pellegrino - Você
pode fazer uma formação de livre atirador. Você
pode fazer... Olha aqui: vamos supor um jovem que queira ser analista.
Procura o Walderedo como analista. Então, o Walderedo vai
analisar esse jovem numa análise que não é
institucionalizada. Esse jovem faz cursos, faz seminários,
frequenta grupos que estudam... Esse jovem, como livre atirador,
eventualmente pode-se tornar analista. Tendo feito análise com
um excelente analista, como é o Walderedo, tendo feito uma
formação psicanalítica válida, porque ele
tem realmente desejo de saber sobre seu próprio inconsciente,
embora ele não se vincule explicitamente a nenhuma
instituição, ele pode vir a ser um bom analista. E eu
conheço alguns casos brilhantes nesse sentido, inclusive o caso
do meu filho Pedro. E digo a ele: Pedro, não se
institucionalize, pelo amor de Deus! (Confusão absolutamente total)
Lira - O Hélio é maluquinho...
Galina - Eu não acredito que, por muito tempo se possa ficar em isolamento...
Pellegrino - Não
sou, em princípio, contra a instituição. Sou
contra deformações ou neoformações
pseudo-institucionais.
Lyra - Ele acha que é pervertida, ele acha que a instituição perverte...
Pellegrino - Não,
não. Algumas, não todas Lyra, não é porque
eu seja contra, não, deixa eu te explicar. Não,
não Lyra, tanto que eu estou na instituição. No
caso do Pedro, acho que ele está fazendo uma
formação de livre atirador, de excelente nível.
Que Deus assim o conserve. (pedaço da gravação inaudível)
Pellegrino - ...a
Sociedade tem o direito de saber como o candidato trabalha, não
o que ele sonha, nem como vai a análise dele. O que a Sociedade
deve fazer para aquilatar a capacidade ou não do candidato
é medir a qualidade do trabalho dele, e isso se pode conseguir
através de um corpo de supervisores da sociedade que possam
ouvi-lo em supervisão - duas ou três, ou quantas forem necessárias - para poder dizer: esse homem trabalha bem.
Galina - Muda
a autoridade, desloca o problema da autoridade para outro lugar, mas
não muda a essência da questão da
formação psicanalítica.
Pellegrino - Muda
fundamentalmente, porque abre-se a possibilidade de o sujeito fazer uma
boa análise, porque a análise fica descontaminada de
burocracia e de institucionalização.
Galina - Eu tenho minhas dúvidas, eu tenho minhas dúvidas.
Lyra - O que? Que dúvidas?
Galina - Do
que ele diz, porque toda vez que um indivíduo faz análise
para se tornar analista, a instituição está no
meio, de uma forma ou outra...
Pellegrino - Não está, não. Pelo menos, não deveria estar.
Sternick - Eu
fiz formação analítica, com muitos anos de
análise, supervisão e pesquisa, fora da
instituição. Eu não fiz institucionalização analítica, e isso é diferente. São duas coisas diferentes...
Pellegrino - É. Isso é verdade... estou de acordo com ele...
Sternick - Então,
como psicanalista independente, eu observei aqui que o que se discutiu
foi sobre instituições, e a nossa conversa também
era sobre psicanálise. Eu acho que não tem nada a ver,
desculpem. Não tem absolutamente nada a ver psicanálise
com grupos de psicanalistas.
Galina - Mas como não?
Sternick - Eu não acho que exista uma Sociedade Brasileira de Psicanálise... (confusão geral) ...Eu acho que não existe (interrupções ininteligíveis) Sociedade
Brasileira de Psicanálise. Não existe Sociedade
Psicanalítica do Rio de Janeiro. Isso não existe! O que
existe é Sociedade Brasileira dePsicanalistas, e existe a Sociedade de Psicanalistas do Rio de Janeiro. São duas coisas diferentes: grupos de psicanalistas e psicanálise, aquilo que se faz entre uma pessoa e outra, na relação
Galina - Não, não, Paulo...
Sternick - Então,
eu queria que a gente falasse um pouco também sobre, digamos
assim, as correntes mais influentes de teoria e técnica, sobre a
clínica, sobre, por exemplo, as repercussões das
idéias da Melaine Klein hoje, ou do Bion, por exemplo, das
formulações do Bion sobre memória e desejo, sobre
o trabalho que ele comunicou... Podíamos até discutir
sobre as repercussões das idéias de Lacan na teoria e na
clínica, quer dizer, eu acho que a gente pode tentar falar um
pouco sobre isso. O Dr. Lyra, por exemplo, que é uma pessoa de
muita experiência, pode falar sobre como ele vê hoje em dia
a situação da teoria e da clínica
psicanalítica, a partir das últimas
contribuições de Bion, ou de Melaine Klein...
Lyra - Posso
falar? Eu acredito naquele provérbio chinês milenar que
diz: a sabedoria é aquilo que sobra depois que a gente esquece o
que aprendeu. Eu acredito nisso. Isso está ligado aos
fenômenos de introjeção,
incorporação: depois que é assimilado o
negócio, você esquece. Quando você conta, já
não sabe mais de onde veio, se foi do feijão, do arroz.
Psicológicamente, isso é bem mais complexo. Eu andei
comendo uma porção de coisas, sabe? Todos nós,
claro, mas eu me dou o privilégio narcisista de ter comido, de
ter mamado numa teta privilegiada, que era a Sociedade Britânica
no seu auge, onde não faltavam Melanie Klein, com quem fiz
supervisão, Hanna Segal, Paula Heimann, Joan Riviere, Winnicott.
Todos foram meus professores. E essa gente toda discutindo... Eu fiquei
engolindo aquele negócio todo, eu não sei mais de quem
são essas coisas. Claro, às vezes você pode
distinguir: isso é mais Melaine Klein, aquilo é... Mas de
acordo com aquele provérbio chinês, você esquece. A
gente não sabe mais de onde vem...
Galina - Assimilou...
Pellegrino - Porque ele está trabalhando sem memória e sem desejo.
Lyra - Isso
é um negócio também relacionado a um mecanismo de
desenvolvimento da criança, que eu aprendi também: a
criança, depois que começa a imitar os pais, os sons e a
linguagem, a linguagem passa a ser dela... Se não há dificuldades, a linguagem passa a ser dela...
Pellegrino - Isso, exato, ela tem fala própria...
Galina - ... nós discutimos instituição porque a instituição é muito
Pellegrino - Nós
somos contra a perversão na instituição! Contra a
instituição perversa! Agora, eu morro pela
instituição que me ajude. É o que fazemos, no
Forum de Debates.
Ibsen - Eu
só tenho um reparo a fazer, porque eu acho que cada um segue um
percurso próprio, então, através de descaminhos,
através de certos descaminhos, aqui chamados de
“pseudo-análises”, se dá o encontro, sempre
faltoso, do sujeito barrado, extraviado.
Galina - Cada
vez que entra uma teoria nova, uma visão nova, a
psicanálise, digamos assim, entra em convulsão. O
lacanianismo está produzindo isso. Os lacanianos da nossa
sociedade estão agitando a sociedade.
Pellegrino - Mas quem são os lacanianos da nossa sociedade?
Galina - Um deles é você.
Pellegrino - Não, não é verdade.
Galina - Ah! Hélio, não seja modesto!
Pellegrino - Não, não, eu não conheço suficientemente o Lacan, para me dizer lacaniano.
Galina - Agora,
é uma convulsão, é uma agitação...
é uma mobilização, porque questiona todas as
coisas... obriga as pessoas a pensar, obriga as pessoas a rever... e
faz as pessoas sofrerem e se assustarem.
Pellegrino - Muito bom!
Galina - Nossa
sociedade é eclética, aberta a várias teorias.
Agora vieram teorias novas... Eu acho que ela envelheceu um pouquinho,
ficou um pouco estática, por causa do funcionamento
institucional... e agora estão entrando teorias novas que
não estão podendo ser assimiladas, e que estão
convulsionando a sociedade, estão agitando. Mas eu acho que
isso... toda agitação é boa. Eu acho que tudo
isso, se puder ser assimilado, se puder ser entendido, vai enriquecer a
sociedade.
Ibsen - Eu
acho que, quando se vai falar a respeito de psicanálise, sobre
psicanálise, a gente começa a se distanciar dela. Porque
essencialmente, a psicanálise é escuta.
Galina - ... é uma vivência...
Pellegrino - É isso aí.
Ibsen - A
Galina fez uma interferência aqui que eu não posso
aceitar. Eu acho que a questão de vivência, essa
questão de afeto e tudo, isso é uma coisa que tem afetado
negativamente até a compreensão do que seja
transferência em psicanálise, não é? Eu acho
que cada analista tem que, de alguma forma, ser um novo Freud, tem que
reinventar a psicanálise. Porque a psicanálise, o
discurso da psicanálise é tão subversivo que a
pessoa não suporta os efeitos desse discurso, fecha o furo,
arrolha e então pega desvios e faz, digamos, de um afluente, a
via principal. O que eu quero dizer com isso é que o discurso
psicanalítico, tomado na acepção que o Lacan
propõe, o retorno ao sentido de Freud como o sentido do retorno
a Freud, implicaria que, sendo a análise essencialmente a
escuta, a escuta daquilo que o paciente fala, quer dizer... a
clínica psicanalítica é o dito numa
análise. Lendo o Abraham, considerado excelente clínico,
a impressão que me dá é o seguinte: tudo o que ele
escreve são imaginações dele a respeito do que ele
supunha que ocorria ali. É a visão que ele tem daquelas
coisas. Não há, em nenhum momento, um dito do paciente. E
eu acho que é fundamental o significante como materialidade em
cima da qual se possa trabalhar. Então, num certo sentido, um
analisando procura o analista quase como se dissesse assim: o que
é que ele espera de mim? E, quando uma análise termina,
é como se houvesse uma troca do quê pelo quem. Quando uma
análise termina, existe um sujeito, um sujeito como suporte de
um desejo, que poderia dizer assim: quem sou eu? Isso é, em
linhas gerais, o que eu penso. Agora, para completar, acho que as
instituições, não só filiadas à IPA,
mas todas elas, seguem muito um modelo universitário, quer
dizer... já houve a época em que as histéricas
tinham prestígio; constituiam o modelo dominante, agora, o
modelo que domina o mundo é o modelo burocratizante
típico do sistema universitário, que carimba com a
mesmice de um saber suposto sujeito ao vazio, a falta, a
suposição de um sujeito suposto a saber. Então, em
instituições onde vigora o discurso universitário,
é impossível surgir o psicanalista. Uma coisa é se
ter informações sobre psicanálise; outra coisa
são as formações do inconsciente. E volto a dizer:
o psicanalista se constitui através da análise, em que
ele recebe na transferência, lugar da verdade, uma determinada
transmissão, que pode ser
Pellegrino - Claro, ele tem que prestar conta à Sociedade.
Ibsen - Completando,
existe, também, uma confusão a respeito de técnica
psicanalítica; não existe técnica
psicanalítica. É uma leitura deformada do Freud pensar
que existe uma técnica psicanalítica. Isso é que
dá margem a que surjam espuriamente várias psicoterapias,
porque, na realidade, o que muitas pessoas chamam de
relação analista-analisando é
relação entre um falante e o analista, a técnica
psicanalítica não existe, existe escuta
psicanalítica.
Lyra - Bem,
isso merece muita discussão e há muitos pontos aí
com os quais, eu sei, muita gente não concorda.
Pellegrino - Bom,
vou falar de novo a partir da minha prática, que é a
prática da crise. Não vou falar de problemas
técnicos específicos. Vou falar do panorama geral. Acho o
seguinte: houve um momento em que as instituições ligadas
à IPA alimentaram a ilusão de que elas poderiam ter o
controle tranquilo, a hegemonia tranquila da atividade
psicanalítica no Brasil. Tais instituições foram
ingênuas, porque, como disse a Galina muito bem, nós
não somos uma ilha. Somos tramados num tapete, e esse tapete
é muito complicado; inclusive, entram fatores políticos,
fatores de mercado, entra a pressão da demanda. A demanda que
nos é feita é muito forte, porque o País
está em crise, o País precisa de uma palavra que oriente,
e muita gente da classe média nos procura, em busca dessa
palavra. Esse caudal de fatores quebrou a hegemonia ilusória das
sociedades tradicionais. E eu acho isso bom, como disse a Galina. Temos
polêmica, temos o pólemos do velho Heráclito pré-socrático. O pólemos é
exatamente o pai de toda a virtude: é a
contradição, o movimento a dialética. E isso
é o que, a meu ver, caracteriza o momento psicanalítico
atual. É indiscutível que o movimento lacaniano - do qual não sou representante não porque o despreze, mas por não conhecer bastante Lacan, para intitular-me como tal -,
vem deixando marcas em nossa paisagem psicanalítica. A
contribuição de Lacan é dessas que não pode
ser ignorada, por quem quer que se dedique à prática da
psicanálise. Lacan, no retorno dele a Freud, funciona como um
cartógrafo genial que, realmente, redimensionou a terra nova
descoberta por Freud... O Lacan é um epistemólogo de
gênio! Ele releu a terra descoberta por Freud em termos do atual
estágio de nossas ciências humanas: usou a
linguística, a antropologia, a filosofia, usou Heidegger,
Ibsen - É. Ele partiu do Hegel, embora depois ele tenha...
Pellegrino - Não.
Partiu de Hegel e chegou a Hegel! Mas, voltando ao tema: de repente,
ficou questionada a hegemonia tranquila e adiposa das sociedades
tradicionais. O movimento lacaniano existe, o Magno é um homem
que não conheço pessoalmente, mas me parece
inteligente... Conheço ele pela poesia dele, que é boa, e
isso me faz levá-lo a sério: ele é bom poeta.
Não estou dizendo que seja bom ou mau psicanalista. Não
conheço o trabalho dele. Acho que é sujeito inteligente,
bom poeta, fez uma formação na França, analisou-se
lá, enfim: é um elemento inquietador, que está
presente e trabalha muito!
Ibsen - Muito,
muito! Com relação ao Hegel, Lacan o estudou com H. Kojen
durante 15 anos. Eu não diria que o Lacan é hegeliano.
Há reconhecimento indiscutível de sua
contribuição, como, por exemplo, no discurso do senhor,
nos conceitos de Verneinung, etc. Lacan fez um percurso através
de Hegel, mas isso é diferente de chamá-lo de hegeliano.
Pellegrino - Eu
não conheço o Colégio Freudiano, mas sei que eles
trabalham muito! E têm uma força de
convicção, a ponto de terem levado alguns colegas nossos:
o Molina foi para o Colégio, o Belmiro foi para o
Colégio, você, (a Ibsen) espero que não nos deixe...
Lyra - Aos fatos, rapaz!
Pellegrino - Espera aí, vamos com calma!
Lyra - Mas fica aí falando desse pessoal do Magno...
Pellegrino - Eu
estou falando da influência do movimento lacaniano no Brasil, e o
Magno é um dos representantes. Outro representante, por exemplo,
é o Vidal, da Letra Freudiana, que é um homem
sério, honrado, estudioso, e está dando um bom
testemunho! Uma outra instituição lacaniana interessante
é o Instituto Freudiano de Psicanálise, integrado por
pessoas estudiosas, competentes, capazes, que estão fazendo o
esforço delas. Agora, não pertencem à IPA! Acho
isso uma grande conquista! Inclusive porque inquieta a IPA. A IPA, hoje, tem que
levar em conta essa fermentação no pensamento
psicanalítico, que é produtiva e positiva. Eu estou
inteiramente de acordo com a minha velha amiga Galina! Acho que isso
é a pré-condição para a gente encontrar a
verdade. O Lacan, vamos discordar dele no que a gente quiser discordar,
mas ele teve um mérito fundamental: questionou a fundo o
problema central da instituição
Galina - Eu não adiro, não.
Pellegrino - Quer
dizer, você pelo menos o leva em conta, você admite a
possibilidade da fecundidade desse modelo. E esse modelo, o que
é? É nada mais, nada menos do que a tentativa de
preservar a análise pessoal da
institucionalização, isto é, de uma
interferência externa, burocrática, que desnatura e pode
matar o processo psicanalítico. No Rio de Janeiro, hoje,
há uma fermentação produtiva. Nós temos o
movimento lacaniano por um lado, que nos instiga, temos outras
instituições, como a instituição do Horus
Vital Brasil, que é uma honrada e decente
instituição (o Horus é um dos patriarcas da
psicanálise no Rio de Janeiro, homem profundamente honrado,
estudioso e inteligentíssimo), ... o Instituto de Medicina
Psicológica; temos
o Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, feito de
ex-integrantes da Sociedade do Rio de Janeiro. Temos a SEPLA, agora em
fase muito produtiva. Enfim, o importante é o seguinte: é
que nós perdemos, quebramos os dentes da nossa
onipotência. Volto ao Lyra: nós perdemos a nossa
onipotência. Volto ao Lyra: nós perdemos a nossa
onipotência.
Galina - Felizmente!
Lyra - Perderam?
Lyra - Eu acho que não...
Pellegrino - Nós todos perdemos a nossa onipotência: a Brasileira e a Rio de Janeiro, e eu acho isso muito importante.
Lyra - Todo
mundo está procurando fazer uma ressurreição de
Freud, como ele era, não sei o que lá, e tal. Eu acho que
esse negócio não é exatamente assim. Quem quer
fazer isso são os lacanianos. Eles acham que o Lacan pode fazer
isso, ou que os lacanianos estão fazendo. Esse negócio,
eu acho que é uma balela muito grande. O Freud disse: “Eu
andei por vários caminhos nos quais não fui mais longe
porque tinha outros caminhos que eu queria também seguir, e
espero que as pessoas que venham depois prossigam nesses caminhos que
eu comecei”. Mas de acordo com os lacanianos: “Não,
Freud não foi lido direito: então vamos olhar
direito”. Por que todo mundo leu Freud errado? Olha só a
onipotência disso!
Galina - Só ele é que leu direito.
Ibsen - Eu
me dou o direito de interferir. Não se trata de
maniqueísmo certo/errado; bom/mal. Lacan propõe uma
leitura de Freud sustentada em uma determinada lógica: a
lógica dos significantes.
Lyra - Espera aí! Eu não posso dizer alguma coisa? Ele falou tanto...
Ibsen - Ele interferiu na minha fala também.
Lyra - Mas ele falou tanto do Lacan aí, eu não posso dizer alguma coisa?
Ibsen - Você leu o Lacan?
Lyra - O Lacan?
Ibsen - Você leu o Lacan?
Lyra - Eu
leio Lacan, o bastante para não poder, para não aguentar
mais! Então, é assim: isso aqui é assim porque
Lacan disse. Os discípulos dizem: isso aqui é verdade.
Por que? Porque Lacan disse! Então, esse negócio é
muito mais do que nas épocas mais idealizadas em que Freud viveu
como ídolo da psicanálise e tal. O Lacan assumiu o
negócio.
Galina - O herdeiro de Freud!...
Lyra - Esse
negócio de que todo mundo quer ressurgir o Freud é
negócio lacaniano. Eles querem ressurgir o Freud? Não
é o Freud, não! É o Lacan! Com a personalidade do
Freud supermodernizada e superinterpretada e superlida, lida de uma
maneira, numa linguagem completamente diferente, que todos nós,
as burrices dos psicanalistas do mundo inteiro ficaram lendo Freud sem
saber que estavam lendo Freud! Só o Lacan é que
descobriu: olha, vocês estão lendo tudo errado!
Vocês estão lendo o Freud em alemão, e o
negócio é em outra língua... Isso é uma
balela. Isso são só contestações.
Não é que todo mundo está querendo ressurgir o
Freud. Quem está querendo ressurgir o Freud são os
lacanianos. Agora, todo o mundo está querendo é pegar o
que o Freud deixou e usar da melhor maneira possível. Isso
é que eu acho que é verdade.
Quanto
à pergunta do Paulo Sternick, que é o principal:
clínica e técnica. Existe técnica? Sim, existe! Eu
acho que isso é uma ditadura lacaniana: “não
há técnica!” Por que não há
técnica, por que? É que Lacan disse. Lacan disse isso,
então isso é verdade. Então, não há
técnica, no sentido geral de técnica... a técnica
você pode transportar para o setor de engenharia, de biologia, de
qualquer coisa... “Não há técnica,
não há
Como
estão a técnica e a clínica da psicanálise
no Brasil atual? A melhor psicanálise feita no Brasil
atualmente, na minha opinião, é o núcleo que
evoluiu em torno de Melaine Klein, Bion, Paula Heimann, essa gente
toda, Winnicott... Essa gente fez um conglomerado, uns com mais tintas
bionianas, outros com mais tintas winnicottianas, e tal, essa gente
é que trabalha a melhor psicanálise do Brasil. Realmente.
Acho que o melhor que há de clínica e técnica em
psicanálise no Brasil está em torno daquele
núcleo. Há um momento em que eles se casam de uma maneira
produtiva, de uma maneira fecunda...
Ibsen - Como
é que eles se casam? Na cabeça de quem eles se casam?
Qual a diferença entre dizer “lacanianos” e
conglomerado com tintas bionianas, winnicottianas, etc? É um
raciocínio tantológico.
Galina - Eu posso dizer? Eu posso completar?
Lyra - Pode.
Galina - Porque eles se baseiam numa teoria na qual eu acredito
agora. Cada psicanalista parece acreditar em alguma coisa, não
é? Na teoria de relação de objeto, e que implica
exatamente, digamos assim, na existência, na importância
dos afetos, dos afetos primitivos. E não se pode traduzir isso
em discurso frio, mas tem que ser revivido. A teoria de
relação de objeto é revivido na análise.
Pellegrino - Eles são falados, Galina.
Galina - São
revividos na relação transferencial. É essa a base
da nossa teoria e da nossa técnica. E isso implica uma
técnica. Há uma maneira de trabalhar a
transferência. Há maneiras melhores ou piores, mas
há uma maneira que é eficiente, há uma maneira que
funciona.
Pellegrino - Isso é a interpretação!
Galina - É,
é a interpretação, mas que não pode ser
traduzida em discurso frio, não pode ser traduzida em
ausência de normas, de regras...
Ibsen - Por que discurso frio?
Galina - Porque
cada relação estabelece, tem limites, tem fronteiras, tem
maneiras de ser, tem padrões que se estabelecem, e tem afetos
implicados que têm que ser respeitados.
Pellegrino - Afetos que têm que ser analisados, através da palavra.
Galina - Na análise, eles têm que ser traduzidos em linguagem, mas têm que estar presentes e vividos.
Galina - Então,
eu concordo com o Lyra: os melhores psicanalistas são aqueles
que vivem uma relação de objeto com o paciente.
Pellegrino - Aqueles que sabem falar dos afetos e interpretá-los.
Ibsen - Acabou? Eu discordo de tudo isso que vocês falaram agora. A questão da técnica, por exemplo.
Galina - ... e são capazes de traduzí-la numa linguagem...
Pellegrino - Linguagem, perfeito, numa linguagem!
Galina - Numa linguagem accessível ao paciente.
Ibsen - Eu
discordo de tudo o que a Galina disse e, logicamente, de tudo que o
Lyra falou também. Eu quero justificar minha discordância.
Galina - Ótimo. Adoro discordâncias!
Ibsen - Há
muito tempo, quando eu tive um grupo de estudos com Galina, com
Gabriel; com Garrido e... lembra disso? Você não lembra
disso, não! Logo que Bion veio ao Brasil e haviam aquelas fitas,
a gente ia ao consultório do Garrido estudar, e de vez em quando
eu te dava uma carona, você morava na Leopoldo Miguez e eu te
dava uma carona de volta, está esquecida disso?
Galina - Ah, sim! Agora me lembro...
Ibsen - Sem
memória e sem desejo. Certo? Então, eu me lembro nessa
época, de uma conversa com você, de uma
posição sua que você está repetindo aqui
hoje. É. Quando alguém falava, você disse assim:
“Isso é o que você acha que
o Bion falou”. É como você dissesse assim: o que o
Ibsen fala é o que o Ibsen acha que Bion falou, o que o Garrido
fala é o que o Garrido acha que Bion falou, agora, o que Galina
fala é o que Bion falou. Eu quero que me escutem até o
fim! Então, eu acho que uma coisa importante é acentuar
que estão usando dois pesos e duas medidas. Mas a
Psicanálise não é um leito de Procusto. Eu vou
propor amanhã ao Magno, se o Lyra me permitir, que ele possa ser
membro do Colégio Freudiano, porque parece que ele conhece mais
Lacan do que o próprio Magno, não?
Lyra - Como é?
Ibsen - Parece
que você conhece mais Lacan, você fala com mais propriedade
do Lacan do que o próprio Magno, não é? Você
se apropriou da coisa ou “causa” do Lacan. Você falou
de Lacan aí com, realmente, uma tal propriedade que, se
você aceitar, eu vou propor você para membro do
Colégio Freudiano. Deixa eu completar...
Pellegrino - Deixa de molecagem, Ibsen...
Ibsen - Não, eu quero completar! Porque o que eu escutei foi o seguinte:
Galina - Se não é, o que é então?
Ibsen - Ela é... a psicanálise...
Galina - Se não é, o que é que é, ora?!
Ibsen - A psicanálise não é... a psicanálise é uma relação de abjeto.
Galina - O quê?
Ibsen - De abjeto.
Galina - O que é isso?
Ibsen - Ela é uma relação de abjeto.
Galina - É uma abstração!
Lyra - Vamos reler o Freud outra vez!