Psicanálise de brasileiro – Fabio Lacombe
* Fabio Lacombe
Independente do viés pelo qual abordemos essa qualificação de brasileiro, o desafio do título é pensá-la como uma restrição do espaço psicanalítico, ou pelo menos, uma conformação a ditames não pertencentes ao repertório conceitual determinante de sua doutrina e de sua prática. Por suposição a psicanálise “mergulha” numa particularidade de onde devemos extraí-la com a garantia de ter se mantido na sua integridade estrutural. Nesse sentido, brasileiro pode ser substituído por americano, senegalês ou coreano que a questão se mantém a mesma. Aliás, é só na hipótese da identidade com outros “lugares” onde a psicanálise pode “submergir”, para nos mantermos no horizonte de nossa metáfora, que o título pode mobilizar um empenho de reflexão. Chamar a atenção para esse tipo de particularização, não soa tão naturalmente como quando falamos de música de brasileiro, de literatura de brasileiro, ou mesmo de cultura de brasileiro. Por sua vez é mais fácil acolhê-la do que se nos for solicitado falar de uma física de brasileiro, ou matemática de brasileiro. O que podemos começar a suspeitar é que o título convoca a pensar a relação que a psicanálise entretem com as diversas formas de expressão cultural. Dito de outra forma: a psicanálise, ao se ver envolvida pelos parâmetros de uma determinada cultura, assume uma feição nova, decorrente de tal envolvimento?
No caso das ciências, principalmente as chamadas exatas, parecem desde o início ocupar um espaço universal, não mantendo nenhum vínculo especial com a terra, com o lugar onde eventualmente nasceram. As manifestações artísticas, por sua vez, estão diretamente ligadas ao solo de sua concretização. Como diz o cancioneiro popular:
“De onde vem o baião?
Vem de baixo,
Do “barro do chão”.
É tão apropriada essa vinculação, que podemos ousar maiores particularizações e falarmos de música nordestina, sertaneja, country music, etc. De fato não há uma oposição entre esses dois modos de ser, pois não só conhecemos várias obras que se nutriram da união com a terra de origem e alcançaram uma dimensão planetária, como a todo momento, nos deparamos com a absorção regional de “criações universais”.
A psicanálise tem registro de nascimento com data e local bem definidos e, no entanto, desde os seus passos iniciais adquiriu um estatuto de universalidade. Seus conceitos embasaram um método de utilização universal pouco diferindo das vicissitudes de qualquer saber científico. Porém, a experiência de aplicação do método vai implicar numa restrição inevitável por se assentar na expressão da língua. Colocada no âmbito dessa referência, a psicanálise não tem como não se regionalizar: é sempre de brasileiro, de alemão, de francês, etc.
Não se trata de uma mera questão de tradução de seus conceitos para as diversas línguas, mas a práxis psicanalítica tem como característica promover a possibilidade de uma constante recriação desses mesmos conceitos, sem o que não se sustentaria qualquer continuidade necessária para o desenvolvimento teórico e prático. Sim, se um dos postulados básicos para a aplicação do método é o esquecimento da teoria, torna-se imprescindível, como um dos resultados, o ressurgimento dos mesmos conceitos teóricos revigorados, ou mesmo transformados, além de outros novos, capazes de integração no acervo dos já existentes. Na medida desta constante recriação, banhar-se no idioma em que o método está sendo aplicado, partindo do pressuposto de que os termos de uma língua subsumem a experiência vivida daquela comunidade linguística, diversa de outra, cabe a questão: verdrängung, refoulement e recalque dizem a mesma coisa?
É claro ser possível levantar essa questão para conceitos pertencentes à física, por exemplo, mas certamente as consequências desse questionamento não atingirão a virulência observada no interior da psicanálise, pois se partimos da suposição de sua universalidade, nos defrontamos com a possibilidade de ver seus postulados teóricos encerrados nos limites próprios a cada comunidade linguística, configurando uma babel. Se quisermos evitá-la, temos de apurar onde residiria o verdadeiro estatuto de universalidade da psicanálise. A via traçada pela aproximação aos conceitos teóricos conduziu-nos a um impasse. Resta-nos retornarmos à interpelação de sua prática.
Comecemos por investigar a relação que mantém com os conceitos. Tomemos o exemplo de inconsciente: que relação a dimensão conceitual mantém com a experiência dele feita na clínica? Sabemos duas características fundantes dessa experiência: a estranheza e a surpresa. Certamente, são aspectos que passam ao largo do trato entretido com o conceito. Ao nível abstrato onde se situa, a teoria está comprometida com a harmonia e a integração. A abstração visa na sua escalada progressiva, escoimar de suas formalizações qualquer referência à experiência vivida. É na física e na matemática onde encontramos seu grau maior de desenvolvimento. Nelas as formas representativas das diferentes relações utilizam-se de elementos que em si nada querem dizer: são puras expressões. No entanto é razoável supormos ser exatamente esse estado “límbico”, que cria as condições para a emergência da estranheza e da surpresa. O uso continuado de determinado conceito produz o mesmo efeito de abstração: há um afastamento progressivo da experiência referencial que promoveu sua criação: “o conceito é o túmulo da coisa”. Com o ressurgimento da “coisa”, o conceito pode se revelar insuficiente para representar novas experiências proporcionadas por esse reencontro, sempre tinto de estranheza e surpresa e, apesar de manter-se inalterado no plano da expressão, retoma significados novos, recalcando os anteriores.
Nas duas situações, a da abstração progressiva como a do uso continuado, revela-se o caráter circular da dinâmica de relacionamento entre o significado e a expressão. Na experiência habitual, o significado toma o primeiro lugar da cena fazendo-nos até esquecer ser suportado pelo plano da expressão. Quando o sentido se deteriora ou a expressão se afirma indevidamente (como no caso do ato falho), há uma troca de posições e uma outra possibilidade de significação se inaugura. É de se supor que o significado nascente está apenas iniciando as peripécias semelhantes às do que foi por ele derrogado, se cai no uso da comunidade. É exatamente no “ressurgimento” do plano da expressão que se dá a vigência dos sentimentos de estranheza e surpresa arautos do inconsciente.
Na história dos conceitos, dos significados, das línguas, a dinâmica entre significado e expressão é exemplificada de várias formas bastante eloqüentes. A psicanálise porém se debruça sobre fenômenos do dia-a-dia, como os sonhos, os atos falhos, as chamadas formações do inconsciente, e cria um método cujo objetivo é revelar como essa dinâmica está constantemente se processando. E isso porque algo resiste a se identificar totalmente com qualquer expressão ou significado: a singularidade do sujeito. A situação analítica seria a constituição de um espaço onde o sujeito pode tingir com significado absolutamente singular qualquer expressão, se história pessoal o autoriza ainda que transgrida as convenções e os códigos.
Se admitirmos estar o caráter universal da psicanálise radicado no método capaz de surpreender a dinâmica significado/expressão, ou se quisermos, consciente/inconsciente, verificamos que tal se dá no mesmo momento em que se afirma estatuto de singularidade do sujeito.
Ouçamos Freud: “Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos. Acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu ideal de ego segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo partilha, portanto, de numerosas mentes grupais – as de sua raça, classe, credo, nacionalidade, etc. – podendo também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade. O compromisso maior da psicanálise é com a descoberta desse fragmento de independência e originalidade”. A psicanálise, na visão de seu criador, tem seu compromisso maior assumido com a descoberta desse fragmento de independência e originalidade, ou seja, com a superação e suas identificações, inclusive de sua nacionalidade. A questão que se nos apresenta agora é: em que consiste tal superação?
No texto Freudiano, de onde foi extraída a citação, as identificações aludidas são as verificadas entre os egos dos indivíduos, onde as conquistas inerentes à individualidade se perdem. Se nos grupos passageiros esse fenômeno é evidente, nos estáveis como por exemplo os grupos nacionais, as manifestações são menos exuberantes, mas nem por isso menos comprometedoras. É em nome de garantir as conquistas já realizadas que o indivíduo está constantemente desafiado a superar sua “acomodação” (via identificação) em grupo mais ou menos organizados. Com tal desempenho, retoma para si as possibilidades perdidas na experiência da identificação, e se torna mais capaz de enriquecer as características definidoras do grupo a que pertence. Superar não diz portanto, a exclusão da convivência grupal, mas a abertura para a possibilidade da inclusão constantemente renovada pela dinâmica incessante de identificação e diferenciação. Só dessa forma se constituem os líderes.
A psicanálise de brasileiro é a de qualquer sujeito vinculado à cultura brasileira, seja na condição de analista ou analisando, que se submeta ao desafio da superação dessa identificação, oportunidade sempre oferecida pelo processo analítico. No fortalecimento adquirido no contato com sua singularidade, torna-se apto a enriquecer sua cultura e não temer o contacto com as outras, que por se apresentarem como mais “desenvolvidas”, tenderiam a colonizar o brasileiro.
O engajamento no processo analítico já se dera por conta de uma impossibilidade do sujeito de dar significado a certas experiências, porque na forma de sua inserção na ambiência cultural, os significados consensuais, ou seja os admitidos, não eram capazes de se articular com o plano da expressão de seu sofrimento, a fim de dar-lhe uma significação. A análise oferece a oportunidade de encontrá-la através de um mergulho na raiz do relacionamento conflitivo do sujeito com a cultura, de onde uma subjetividade resgata o direito ao exercício de sua singularidade e a cultura de interditora passa a se apresentar como continente para tal desempenho. Diferente de outras manifestações culturais o que a psicanálise apresenta como criação é uma subjetividade com maior capacidade de se nutrir no solo cultural a que pertence e alçar vôo em direção ao universal.
* Psicanalista, membro da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro.
BIBLIOGRAFIA
Barthes, R. — Elementos de Semiologia, Ed. Cultrix, S. Paulo, 1974
Freud, S. — Análise das Massas e Psicologia do Ego, Edição Standard, Imago ED., R.J., 1974